16.6.06

A reinvenção da escrita

Não escrevo sobre Copa do Mundo, porque não tenho nada de novo a dizer sobre o onipresente assunto sobre o qual já se debruçam tantos jornalistas que não haverá leitores/telespectadores para tanto que se produz. Mas falo de um texto do blog do Juca Kfouri, dos mais afamados jornalistas esportivos do país, que se mostrava dividido entre o espanto e a satisfação de publicar suas palavras para o mundo todo na internet, por meio de uma rede sem fio, enquanto se deslocava de trem a 250 km, entre uma cidade e outra. É batucar no PC, reler, resolver se está OK e clic: publicar.
Agora o texto viaja pelo ar, invisível, como já faziam os sinais de rádio e TV. A escrita, a pioneira das formas de imprensa, adquire o caráter instantâneo que era exclusividade destas outras mídias.
Publicar suas próprias impressões, opiniões e informações está praticamente ao alcance de qualquer um. Podem-se escrever e divulgar sandices, mentiras, leviandades ou verdades, mas não se pode proibir ninguém de se manifestar. O público mais que nunca é o juiz supremo, decidindo o que ler e no que crer. Não temos ainda a dimensão exata do impacto disso, mas pode-se dizer que é uma revolução.
Penso quanto ao longo da história a palavra escrita já foi motivo de perseguição. Quanta gente já se arriscou e morreu, por carregar livros e textos que os donos do poder não queriam que circulassem. Quantas fogueiras acendidas pela igreja, pelos nazistas, pelos comunistas, pelos ditadores, pelos falsos moralistas.
Penso nas bíblias nos países do leste europeu, desfolhadas página por página quando o cristianismo era proibido, para que assim fossem trocadas entre os crentes clandestinos, em volumes fáceis de serem escondidos ou destruídos sem deixar rastros, em caso de serem seus detentores surpreendidos pela polícia.
Ou nas bibliotecas enterradas no quintal nos tempos da nossa infeliz ditadura militar, por conterem obras marxistas cujos donos nem mesmo compartilhavam daquela visão de mundo, mas queriam ler, entender, informar-se, fazer seu julgamento sem precisar que outros pensassem por eles.
Com a internet, blogs, etc, tudo ficou mais difícil para a repressão. É certo que nos países islâmicos e na China, os governos lutam sofregamente para impedir o acesso a páginas que consideram subversivas. Blogueiros independentes já foram e continuarão a ser presos. Mas o trabalho de repressão torna-se cada vez mais difícil, bem como fica quase impossível vetar o acesso das pessoas à informação, de posse da qual cada um terá melhores condições de decidir em que acreditar, visto que a verdade, para o bem e para o mal, não é algo concreto e imutável, pois cada um tem a sua (tem muita gente que acha Hitler um cara legal e pouco se pode fazer para convencê-los do contrário).
Um dos melhores aspectos de tudo isto é a revalorização da palavra escrita, tão pouco prestigiada nestes tempos em que domina o show televisivo. A palavra escrita é tão importante que se considera que a história da humanidade começou a partir do momento em que a escrita foi criada. Tudo que veio antes é pré-história.
A lamentar, principalmente o fato de que, se a barreira do veículo de comunicação foi quebrada (pois você pode publicar seu blog num servidor em qualquer lugar do mundo, inacessível aos censores), falta vencer outro fator muito mais limitador: o analfabetismo, que impede a leitura ou a compreensão e ainda assola a maior parte de nossa sociedade brasileira e é especialmente forte no Nordeste.

Publicado na Tribuna Feirense em 17/06/06

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