3.4.10

Escalada em Monte Santo simula o Calvário (mas quase sem dor)

Cinco da manhã e algumas pessoas já descem o monte, depois de passarem parte da madrugada na adoração à imagem do Senhor morto, na igreja da Santa Cruz, última etapa de uma caminhada que para muitos é uma espécie de lazer e para outros penitência, em Monte Santo, cidade do sertão a 374 quilômetros de Salvador.

O casal Cosme e Maria faz o trajeto todos os anos. Desta vez, o pai desce com o filho Cauã nos braços. A criança com menos de dois anos ainda não tem condições de encarar o desafio com as próprias pernas. A fé do pai o leva a uma aparente contradição. “A gente se sente mais leve fazendo esse trajeto”, justifica.

Com o dia amanhecendo, a maioria ainda vai começar a enfrentar a subida, bastante íngreme em seu início, quando muitos falam em desistir. “Não pode nem parar um pouquinho?”, questiona uma mulher. “Senhor, como estou cansada”, outra faz coro. Um menino, embora demonstrando ainda estar cheio de energia, apela ao pai. “Compra uma água, senão eu vou morrer”.

Entretanto, Mariana Santos, aos seis anos, não faz drama. Tem pressa e nem quer parar para falar com a reportagem. Mesmo sem saber explicar bem o significado da peregrinação, demonstra apego à religião e diz que vai até o fim para rezar na igreja.

Os ensinamentos religiosos são passados pela madrinha Ana Andrade, professora das redes municipal e estadual, que demonstra orgulho da cultura local e  sempre ensina aos alunos sobre a origem dos costumes religiosos. “Eu subo várias vezes no ano e não vou a lugar nenhum fora este fazer peregrinação. Nem a Aparecida (em São Paulo) nem a Bom Jesus da Lapa (na Bahia). Para quê, se tenho aqui na minha cidade?”, argumenta. Segunda ela, que mora na rua em que começa a escalada do monte, não há um dia sequer em que pelo menos uma pessoa não suba.

Quando as condições não permitem ir até o topo, os devotos fazem pelo menos uma parte do caminho, até uma das 24 capelas e pequenas igrejas no trajeto. Laura Maria de Jesus, 67 anos, sobe descalça. Diz que muitas vezes já foi até o fim, mas atualmente a saúde não permite. “Sempre fui muito devota e todos os meus filhos e netos seguem o mesmo caminho. Alguns estão aqui, outros em São Paulo, e lá eles vão para Aparecida”, garante.

Toda encurvada pela idade e pelo esforço, Maria Benigna de Oliveira, 78 anos, sobe se apoiando nas pedras a cada passo. “Vim a Monte Santo poucas vezes. Mas estou aqui hoje. Se não subir não adianta ter vindo”, diz resignada.

A seriedade com que a anciã encara o desafio contrasta com a descontração de muitos para quem tudo não passa de um momento de distração, como um rapaz que cantarola o sucesso “Todo enfiado”, do pagode explícito. Entre os mais velhos, vez por outra ouvem-se queixas sobre a falta de solenidade dos dias atuais.

Porém nem todos os jovens estão ali só para curtir uma caminhada com um grupo de amigos. Uma adolescente de 16 anos, cujo nome será omitido, confessa que fez uma promessa que considera crucial. “É para os meus pais pararem de beber”, revela esperançosa.

Às sete da manhã, as imagens descem o monte, deixando a igreja da Santa Cruz para retornar à Matriz, onde o povo lamenta, reza e toca o corpo de Jesus esculpido em madeira, como se participasse do velório de um ente querido que acabou de falecer.

Mesmo sem as imagens de Jesus e Nossa Senhora da Soledade no alto do monte, as pessoas continuam a subir e descer em busca de graças ou perdão para os pecados, durante todo o dia e até o domingo, quando se encerram as celebrações da Semana Santa.

A subida do monte começou ainda no século XVIII, em 1775, quando o frei capuchinho Apolônio de Toddi, ao conhecer o local, achou que era semelhante ao monte Calvário, onde Jesus foi crucificado em Jerusalém. 

O caminho foi então gradualmente construído e anualmente, além dos rituais idênticos aos que ocorrem na Semana Santa mundo afora, os moradores de Monte Santo e peregrinos que vêm da região realizam a via-crucis carregando as imagens de Jesus, Nossa Senhora da Soledade e São João Evangelista.

As imagens mostram o nascer do sol jogando seus raios sobre a cidade, a Matriz no centro da cidade, com a igreja da Santa Cruz quase invisível lá no alto do morro, a rua onde começa a escalada, o caminho meio encoberto pela neblina e a descida da imagem do Senhor morto (fotos Glauco) 

 

Posted via email from Glauco Wanderley

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